quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A boa-fé objetiva


A boa-fé objetiva




A boa-fé objetiva foi inicialmente introduzida no Direito Civil brasileiro pelo advento do Código de Defesa do Consumidor. Ao longo do tempo teve sua aplicação expandida pela jurisprudência e Doutrina[1], finalmente consagrada na Lei 10.406/2002, Código Civil, nos artigos 113, 187 e 422[2].

Sem receber da norma conceituação exata, passou a ser reconhecida como cláusula geral de observância obrigatória[3]. Cáio Mário da Silva Pereira, ao analisar o instituto jurídico, pondera e explicita seu caráter indeterminado, carente de concretização senão da sua aplicabilidade ao caso concreto. A boa-fé consiste, segundo o autor, em um padrão de conduta variável de acordo com as peculiaridades de cada relação jurídica[4].

Embora jurídica, a boa-fé objetiva aparenta transcender a própria lei[5], mencionada apenas como espécie de medida de segurança comportamental que se modifica com o decorrer da própria evolução social. Imperioso salientar que, nesta ótica, a boa-fé objetiva conduz ao entendimento de que não deve prevalecer a linguagem, seja escrita ou oral, sobre a intenção manifestada na declaração da vontade ou nas proposições nela subentendidas decorrentes da natureza das obrigações contraídas ou impostas por força dos usos interpretativos e da própria equidade[6].

O instituto da boa-fé objetiva ergue-se, ainda, como tradução do interesse social na segurança das relações jurídicas, exigindo das partes, reciprocamente, lealdade e confiança em todo ciclo da vida dos pactos[7]. Entre credor e devedor, imprescindível mútuo apoio na execução do contrato, subordinando-se regras que visem à colaboração de uma parte com a outra. Faz-se um breve parêntese para elucidar a posição que vem tomando a boa-fé em todo Direito Civil como fonte geradora da tutela da confiança. Neste sentindo, discorre Anderson Schreiber[8]:

“[...] o reconhecimento da necessidade de tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos da sua adoção. Passa-se da obsessão pelo sujeito e pela sua vontade individual, como fonte primordial das obrigações para uma visão que, solidária, se faz atenta a repercussão externas dos atos individuais sobre os diversos centros de interesse, atribuindo-lhes eficácia obrigacional independente da vontade ou da intenção do sujeito que os praticou.”

Prosseguindo, outro aspecto a ser considerado é o entendimento empreendido por Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro que entende a boa-fé objetiva como figura jurídica jurisprudencial, estabelecida na dogmatização e padronização das decisões dos Magistrados[9]. A investigação da boa-fé objetiva ocorre quase sempre em terreno de interesses conflitantes, onde sua aplicação e extensão serão determinados pela jurisdição.

Cabe, nesse momento, diferenciar a boa-fé “objetiva” da boa-fé “subjetiva”. A boa-fé subjetiva parte de uma investigação quanto à inexistência da intenção capaz de macular, in casu, o negócio jurídico. Trata-se de abordagem sobre questão psicológica do agente, inquirindo sua intenção e seu conhecimento dos fatos. Já na boa-fé objetiva, analisa-se o comportamento externo dos agentes, bem como suas repercussões fáticas, extraindo-se daí um padrão comportamental de lealdade e que explica Judith Martins-Costa[10]:

“‘A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar [ a parte] em conformidade ao direito [ sendo] aplicável, em regra ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antiética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.’

‘Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242, do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo’”

Reiterando, diferentemente da boa-fé subjetiva, que implica num estado de consciência do agente representado pela inobservância ou ignorância quanto à mácula, a boa fé-objetiva, pela própria previsão que recebe na norma, apresenta-se como standard, princípio amplo, carente de concretização, singularmente aplicado ao caso concreto.

Tal construção remete a um padrão de conduta comportamental, despertando dever positivo inerente à própria essência dos negócios jurídicos, exigindo das partes cooperação para que o contrato seja cumprido. Trata-se, portanto, de um instituto funcionalizado, dever positivo, agir dos contratantes, nunca se confundindo com aquele dever subjetivo negativo. Desta forma, a boa-fé objetiva não diz respeito ao estado mental do agente, mas sim a um comportamento de cooperação necessário às relações jurídicas.

Ainda quanto a diferenciações, cabe a distinção entre o princípio da “obrigatoriedade” e a boa-fé objetiva. A obrigatoriedade, traduzida nos dizeres latinos pacta sunt servanda, está vinculada a necessária produção de efeitos acordados, para a manutenção da segurança jurídica. Já a boa-fé objetiva faz referência ao comportamento das partes contratantes, cujo resultado é substrato para o devido cumprimento daquilo previamente acordado.

A boa-fé objetiva, segundo Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin, inaugura uma posição intermediária entre as tendências subjetiva e objetiva[11], submetendo análise de conduta genérica dos contratantes, depois de já transcendida verificação subjetiva da má-fé. Solidificou-se na jurisprudência e doutrina que a boa-fé objetiva serve a três funções no direito contratual: a) integrativa-interpretativa; b) criativa ou supletiva; c) corretiva ou limitativa.

Quanto à função integrativa-interpretativa, prescrita no art. 113 do código Civil[12], pode-se afirmar que o instituto pressupõe que a extração do conteúdo volitivo em que se eivam as prestações obrigacionais contratadas e os efeitos avençados, deve sempre obediência a um pressuposto positivo determinado por padrão comportamental seguro e satisfativo, inspirado na fidúcia, para as relações contratuais.

Assim explica Judith Martins-Costa[13]: “[...] atua aí a boa-fé [objetiva] como um kanon hábil ao preenchimento de lacunas, uma vez que a relação contratual consta de eventos e situações, fenomênicos e jurídicos, nem sempre previstos ou previsíveis pelos contratantes.”

Nesta funcionalidade, sua atuação se dá em dois momentos[14]. Inicialmente, na determinação da intenção ou sentido comum atribuído à declaração contratual. Em consequência natural, determinada a declaração contratual, surgem lacunas, ambiguidades e obscuridades impassíveis de superação pela mera análise da intenção dos contratantes. Eis que surge a segunda etapa da interpretação, na qual se objetiva eliminar falhas inerentes à própria declaração negocial.

Interpretar conforme a boa-fé objetiva é substituir o ponto de vista relevante, posicionando no contexto do contrato um modelo de pessoa normal e razoável, a fim de averiguar o sentido que se atribuiria à declaração negocial, caso houvesse percebido a deficiência em sua formação[15].

A boa-fé objetiva, portanto, desempenhando esta função, supre a necessidade da modificação do contrato ao limite das causas que ensejariam sua rescisão ou resolução, para dizer o que fariam as partes em vista de deficiência, baseada na vontade que originalmente formou a avença e não no conflito entre os contratantes.

Acresça-se a isso o comentário tecido por Judith Martins-Costa[16] que reconhece a função flexibilizadora e integradora da boa-fé, a qual se desdobra, também, por exemplo, no controle das cláusulas contratuais abusivas, em casos de exceção de inadimplemento ou na interpretação da regra resolutiva. Neste campo, a boa-fé, desempenha exponencial papel metodológico, visto que se se aplica diretamente na sistematização das decisões judiciais.

Quanto à função criativa ou supletiva, a boa-fé objetiva tem o condão de criar deveres jurídicos. Note-se que não emergirão vantagens que poderiam ser juridicamente contratadas em benefício unilateral de uma das partes. Os deveres jurídicos criados são acessórios ao negócio, dizendo respeito a condutas necessariamente recíprocas de cuidado, segurança, informação, cooperação, sigilo, prestação de contas, dentre outros ao sabor de cada relação jurídica. Em sua obra, descreve Judith Martins-Costa alguns exemplos de deveres advindos da função criativa da boa-fé objetiva[17]:

“[...] a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação do seu desideratum, o do consultor financeiro, de avisar a outra parte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamentoescolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociação, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; se os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC [Código de Defesa do Consumidor], artigos 12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como, v. G., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares, pagamento, por parte do devedor etc.”

Dessa maneira, a boa-fé objetiva atua estabelecendo deveres anexos, voltados à mútua colaboração e à cooperação. Diferem-se das obrigações principais avençadas, no que tange a sua finalidade. Estas objetivam os efeitos e os resultados contratados, enquanto que os deveres acessórios, decorrentes da boa-fé objetiva, buscam assegurar o cumprimento das obrigações principais, metamorfoseando-se em deveres comportamentais[18].

Nesse sentido, explica Judith Martins-Costa[19]: “[...] para que possa ocorrer uma coerente produção dos efeitos do contrato, tornam-se exigíveis às partes, em certas ocasiões, comportamentos que não resultam nem de expressa e cogente disposição legal nem das cláusulas pactuadas.” Esta funcionalidade encontra-se prevista no Art. 422 do Código Civil[20] que, embora apenas defina os momentos de aplicação como os da conclusão e execução dos contratos, não limita sua aplicação aos demais momentos contratuais. Tal funcionalidade encontra embasamento na jurisprudência:

“Imóvel. Permuta, com torna em dinheiro. Bens adquiridos para incorporação. Irregularidade, porém, da aquisição da permutante, por conta de débito previdenciário de quem lhe transmitira os bens. Artigo 48 da Lei 8.212/91. Contaminação dos atos subseqüentes. Falta, ademais, de cumprimento do dever de informação, corolário da boa-fé objetiva em sua função supletiva, levando à frustração do fim do negócio. Teoria da pressuposição. Indenização arbitrada em função da privação do uso dos imóveis permutados, entregues à ré. Sentença mantida. Recurso desprovido.”[21]

Por fim, a boa-fé objetiva desempenha função corretiva ou limitativa, de modo a limitar a ruptura[22], a desobediência e o abuso do direito daquilo estabelecido nos contratos e seus deveres acessórios.

Essa funcionalidade, a priori, se expressa na aplicação de institutos jurídicos protetores do equilíbrio contratual, destacando-se, dentre estes: a) proibição ao comportamento contraditório, expresso nos dizeres latinos nec potest venire contra factum proprium, que veda a contradição ou oposição de conduta atual da parte quando já praticada conduta anterior antagônica[23]; b) inciviliter agere que proíbe condutas dentro, fora ou decorrentes das relações jurídicas que violem o princípio da dignidade da pessoa humana, em suas muitas conceituações e dimensões; c) tu quoque se que expressa pela invocação inesperada de regra que a própria parte invocadora já tenha violado.

Esta terceira funcionalidade visa, conclusivamente, conter a abusividade contratual e estabelecer parâmetros comportamentais saudáveis e necessários ao desenvolvimento, cumprimento e execução dos pactos jurídicos. E complementa Judith Martins-Costa[24]: “Apresenta-se a boa-fé como norma que não admite condutas que contrariem o mandamento de agir com lealdade e correção, pois só assim se estará a atingir a função social que lhe é cometida.”.

O Código Civil de 2002 traz a função corretiva da boa-fé objetiva em seu art. 187[25], ao erigi-la como critério de determinação ao abuso de direito. Nessa tríplice funcionalidade, está a importância do instituto da boa fé objetiva na qualidade de norteador maior da vivência, eficiência e lealdade contratual, considerando-se e subordinando-se sempre as disposições legais e os nuances avençados. Neste diapasão, Gustavo Tepedindo, Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin, em seus comentários ao Código Civil, concluem[26], que a boa-fé objetiva, de fato, se adstringe aos fins objetivamente perseguidos com o contrato, em qualquer função que seja: interpretativa, na criação de deveres anexos, ou na restrição de condutas abusiva.

Ante todo o exposto, servirá a boa-fé objetiva à função genérica de consolidar dogmática jurídica voltada ao equilíbrio, eivada na convicção jurídica jurisprudencial inspirada na cultura social de seu tempo e resistente às imperfeições humanas e ao próprio ordenamento jurídico.

Nesse sentido conclui a doutrina de Menezes Cordeiro[27]:

“[...] Uma dogmática jurídica, radicada a cultura que a suporte e na segurança das convicções científicas dos juristas que a sirvam, coloca, entre a fonte e solução do caso concreto, um percurso que nenhuma lei pode dispensar e que o legislador não pode corromper[...]”.

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