ESPECIAL
STJ aplica, caso a caso, CDC em relações de
consumo intermediário
A legislação criada para proteger o consumidor
completou 20 anos no último dia 11 de setembro. Desde sua promulgação, a Lei n.
8.078/1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, ganhou espaço no
dia a dia dos brasileiros, gerando disputas judiciais sobre o tema. Estas
incluem a controvérsia a respeito da aplicação do CDC quando o consumo se dá no
desenrolar de uma cadeia produtiva. Discussão essa que o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) tem enfrentado.
O artigo 2º do CDC explica o conceito de consumidor:
"É toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou
serviço como destinatário final". No entanto, o STJ tem admitido, em
precedentes julgados nas turmas da Seção de Direito Privado (Terceira e Quarta
Turmas), não ser o critério do destinatário final econômico o determinante para
a caracterização de relação de consumo ou do conceito de consumidor.
Muito tem sido discutido, no âmbito do STJ, a
respeito da amplitude do conceito de consumidor. A ministra do STJ Nancy
Andrighi ressalta que “a aplicação do CDC municia o consumidor de mecanismos
que conferem equilíbrio e transparência às relações de consumo, notadamente em
face de sua situação de vulnerabilidade frente ao fornecedor”. Este aspecto
(vulnerabilidade ou hipossuficiência) deve ser considerado para decidir sobre a
abrangência do conceito de consumidor estabelecido no CDC para as relações que
se dão em uma cadeia produtiva.
Consumo intermediário
A ministra Nancy Andrighi explica que, num
primeiro momento, o conceito de consumidor ficou restrito, alcançando apenas a
pessoa física ou jurídica que adquire o produto no mercado a fim de consumi-lo,
aquele que consome o bem ou o serviço sem destiná-lo à revenda ou ao insumo de
atividade econômica.
Ocorre que, evoluindo sobre o tema, a
jurisprudência do STJ flexibilizou o entendimento anterior para considerar
destinatário final quem usa o bem em benefício próprio, independentemente de
servir diretamente a uma atividade profissional. “Sob esse estopim, os julgados
do STJ passaram a agregar novos argumentos a favor de um conceito de consumidor
mais amplo e justo”, afirma a ministra.
Assim, o consumidor intermediário, por adquirir
produto ou usufruir de serviço com o fim de, direta ou indiretamente, dinamizar
ou instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo, não se enquadra na definição
constante no artigo 2º do CDC. Mas a ministra da Terceira Turma explica que se
admite, excepcionalmente, a aplicação das normas do CDC a determinados
consumidores profissionais, desde que demonstrada, em concreto, a
vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica.
Precedente
Essa nova compreensão concretizou-se no
julgamento do Resp n. 716.877, realizado em 2007, na Terceira Turma. O recurso
era de um caminhoneiro que reclamava a proteção do CDC porque o veículo
adquirido apresentou defeitos de fabricação. O caminhão seria utilizado para
prestar serviços que lhe possibilitariam sua mantença e a da família. O recurso
foi atendido.
O relator, ministro Ari Pargendler, afirmou em
seu voto que a noção de destinatário final não é unívoca. “A doutrina e a
jurisprudência vêm ampliando a compreensão da expressão ’destinatário final’
para aqueles que enfrentam o mercado de consumo em condições de
vulnerabilidade”, disse.
As hipóteses ficam claras com a explicação do
ministro Pargendler: “Uma pessoa jurídica de vulto que explore a prestação de
serviços de transporte tem condições de reger seus negócios com os fornecedores
de caminhões pelas regras do Código Civil. Já o pequeno caminhoneiro, que
dirige o único caminhão para prestar serviços que lhe possibilitarão sua
mantença e a da família, deve ter uma proteção especial, aquela proporcionada
pelo Código de Defesa do Consumidor”.
Costureira
Em agosto deste ano, a mesma Turma reconheceu a
possibilidade de aplicação do CDC e garantiu a uma costureira a validade da
norma consumerista para julgamento de uma ação contra uma empresa fabricante de
máquinas e fornecedora de softwares, suprimentos, peças e acessórios para
atividade confeccionista. A costureira, moradora de Goiânia (GO), havia
comprado uma máquina de bordado em 20 prestações. Ela protestava, entre outros,
contra uma cláusula do contrato que elegia o foro de São Paulo, sede da
empresa, para dirimir eventuais controvérsias.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso
no STJ (Resp n. 1.010.834), salientou que se admite a aplicação das normas do
CDC a determinados consumidores profissionais, desde que seja demonstrada a
vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica. Para a ministra, “a
hipossuficiência da costureira na relação jurídica entabulada com a empresa
fornecedora do equipamento de bordar – ainda que destinado este para o
incremento da atividade profissional desenvolvida pela bordadeira – enquadrou-a
como consumidora”.
No caso, a Terceira Turma analisou a validade
de cláusula de eleição de foro constante no contrato. Como foi adotado o
sistema de proteção ao consumidor, os ministros entenderam serem nulas “não
apenas as cláusulas contratuais que impossibilitem, mas as que dificultem ou
deixem de facilitar o livre acesso do hipossuficiente ao Judiciário”.
Freteiro
Em outro caso julgado na Terceira Turma, os
ministros julgaram recurso de um freteiro que adquiriu caminhão zero quilômetro
para exercer a profissão (Resp n. 1.080.719). Ele pedia que fosse aplicada a
inversão do ônus da prova, prevista no CDC, em uma ação de rescisão contratual
com pedido de indenização, em razão de defeito no veículo.
A Terceira Turma considerou que,
excepcionalmente, o profissional pode ser considerado consumidor “quando a
vulnerabilidade estiver caracterizada por alguma hipossuficiência, quer fática,
técnica ou econômica”.
O caso era de Minas Gerais. A decisão do STJ
reformou entendimento do Tribunal de Justiça estadual e determinou a concessão
do benefício da inversão do ônus da prova.
Produtor rural
Recentemente, a Terceira Turma decidiu aplicar
o Código Civil (CC), em vez do CDC, num litígio sobre a venda de defensivos
agrícolas a um grande produtor de soja de Mato Grosso. O relator do recurso é o
ministro Massami Uyeda (Resp n. 914.384).
A questão chegou ao STJ depois que o Tribunal
de Justiça de Mato Grosso reconheceu haver relação de consumo caracterizada
entre a empresa e o produtor rural. Na ocasião, o Tribunal local entendeu que
ser produtor de grande porte não retiraria dele a condição de consumidor, uma
vez que os produtos adquiridos foram utilizados em sua lavoura, o que o
tornaria destinatário final do produto.
Inconformada, a empresa recorreu ao STJ. O
ministro reformou o entendimento. “O grande produtor rural é um empresário
rural e, quando adquire sementes, insumos ou defensivos agrícolas para o
implemento de sua atividade produtiva, não o faz como destinatário final, como
acontece nos casos da agricultura de subsistência, em que a relação de consumo
e a hipossuficiência ficam bem delineadas”, afirmou.
No caso analisado, o STJ afastou a aplicação da
inversão do ônus da prova e possibilitou o prosseguimento, na Justiça estadual,
da ação revisional do contrato de compra, porém amparada na legislação comum, o
Código Civil.
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