Liberdade
de expressão e o direito de criticar
Uma
rápida análise filosófica sobre decisão do Ministro Celso de Mello
O
Ministro Celso de Mello decide no Recurso Extraordinário com Agravo 722.744 do
Distrito Federal que "Jornalista tem o direito de fazer crítica
impiedosa".
A
decisão do ministro é longa, constituída de 18 páginas, e comentá-la ponto a
ponto daria um livro. Como não tenho esta pretensão, serei lacônico em minha
prédica: Todo o equívoco do ilustre ministro se funda em dois conceitos que são
essencialmente filosóficos, quais sejam: liberdade e crítica. Diz o ministro
Celso de Mello na página 5:
“Não
se pode desconhecer que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade
de manifestação de pensamento e de comunicação, reveste-se de conteúdo
abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas relevantes que lhes
são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar informação,
(c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar.”
Pois
bem. Sartre é a melhor pessoa para nos auxiliar aqui – e desde já peço a
compreensão de todos pela ausência da citação das referências, pois não é meu
intuito transformar esta reflexão em artigo acadêmico...
O
ministro acerta quando fala da liberdade como algo inerente ao ser humano. Para
Sartre, principalmente no livro “O Ser e o Nada”, o ser humano é produto de sua
liberdade, já que a todo momento escolhe as ações que irá praticar. Dessa
forma, a liberdade não é uma conquista humana, ela é uma condição da existência
humana. Acontece que a liberdade é uma via de mão dupla, onde um vai com sua
liberdade e o outro vem. Não existe liberdade do indivíduo isolado, pois o
indivíduo não é só. A liberdade é conjunta, daí na obra do Sartre quando se
fala em liberdade, se fala, também, no Outro. O outro é necessário para a minha
existência, mas é também um mal; um mal necessário. “Somos, eu e o outro, duas
liberdades que se afrontam e tentam mutuamente paralisar-se pelo olhar. Dois
homens juntos são dois seres que se espreitam para escravizar a fim de não
serem escravizados.” E diz mais Sartre no livro “O Ser e o nada”, p. 473,
"Pode
acontecer que, pela própria impossibilidade de identificar-me com a consciência
do outro por intermédio da minha objetividade para ele, eu seja levado a me
voltar deliberadamente para o outro e olhá-lo. Nesse caso, olhar o olhar do
outro é colocar-se a si mesmo em sua própria liberdade e tentar, do fundo desta
liberdade, afrontar a liberdade do outro. Assim, o sentido do preterido
conflito será deixar às claras a luta de duas liberdades confrontadas enquanto
liberdades."
Em
resumo: a minha liberdade limita a do outro e a do outro, limita a minha.
Direitos e deveres, senhor ministro: o direito de criticar e o dever de
respeitar. O senhor bem sabe que não existe hierarquia entre direitos e
garantias fundamentais, certo? Logo assim, se por um lado a Constituição
Brasileira diz em seu art. 5º, IV, que “é livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato”, imediatamente após diz: V - “é assegurado o direito
de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem”; e tem mais: IX – “é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença”, e imediatamente após: X – “são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Andou
bem o legislador da Constituição quando inseriu o direito à liberdade de
expressão e a responsabilidade por suas manifestações em incisos próximos.
Liberdade de expressão e respeito ao outro são, em Sartre e na Constituição,
gêmeos siameses.
Sigamos.
O
ministro fala em direito à crítica. Do que se retira da fundamentação do Celso,
a crítica pra ele é um caminhão carregado de brita, desgovernado descendo uma
ladeira e o outro que será atingindo, um fusquinha subindo esta ladeira bem
devagar. Desculpe-me, ministro, mas eu sou uma pessoa muito apegada a
conceitos.
A
palavra Crítica vem do grego “Crinein” que significa “separar; julgar”.
Criticar é concordar ou discordar de algo, apresentando argumentos pertinentes
à questão. Criticar, ministro, não é a licença que um jornalista – ou qualquer
outra pessoa – tem para ofender quem quer que seja. Um jornalista, uma pessoa
qualquer, que chame outro de mentiroso, de ladrão, sem apresentar provas concretas
não está sendo crítico, no mínimo um irresponsável e, no máximo, uma pessoa que
se enquadra em dois crimes previstos no Código Penal: o da difamação (art. 139)
por chamar o outro de mentiroso e o de calúnia (art. 138), por chamar o outro
de ladrão.
Se ainda
resta dúvidas quanto ao conceito ou sentido do que seja uma crítica, recomendo
a reflexão profunda sobre uma frase do teólogo Leonardo Boff:
"Ser
crítico é tirar a máscara dos interesses escusos e trazer à tona conexões
ocultas. A crítica boa é sempre também autocrítica. Só assim se abre espaço
para um conhecimento que melhor corresponde ao real sempre cambiante. Pensar
criticamente é dar as boas razões para aquilo que queremos e também implica
situar o ser humano e o mundo no quadro geral das coisas e do universo em
evolução."
Então,
Dr. Ministro Celso de Mello, o que o senhor chama de liberdade pra criticar é,
nada mais nada menos, do que a abertura dos portões que deixam adentrar em
nossa sociedade o direito de “falar o que eu quiser, doa a quem doer”; e esta
prática, sabemos, não condiz com bons costumes e nem é um caminho indicado pra
uma sociedade como a nossa que, dia após dia, vem perdendo a capacidade de
dialogar e resolvendo tudo “na base da porrada”.
Por
fim e enfim, como eu disse, a decisão do ministro é longa e comentar cada
parte, cada trecho, me tomaria um tempo que eu não disponho e que nem seria
interessante pra este espaço. Peço que leiam a íntegra da decisão dele e
percebam como, brilhantemente, usando o recurso da falácia – recurso que só
gênios conseguem usar com louvor – ele quer nos fazer entender que “esculhambar
o outro é um direito inerente à profissão do jornalista”.
Estamos
perdendo a capacidade de argumentar, de fazer ideias e teses brigarem. Estamos
optando pelo recurso retórico do argumentum ad hominem ao invés de fundamentar
nossos pensamentos numa base teórica sólida. O jornalismo, então, está deixando
de informar pra se tornar um instrumento de mera opinião, de politicagem, de
manipulação ideológica. Estamos caminhando para a barbárie. E o pior: com a
benção jurídica do Supremo Tribunal Federal.
Como
diz o teólogo François Fénelon: "As difamações e calúnias são os
argumentos daqueles que não têm razão."
Veja mais;
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