A boa-fé objetiva
A boa-fé objetiva foi
inicialmente introduzida no Direito Civil brasileiro pelo advento do Código de
Defesa do Consumidor. Ao longo do tempo teve sua aplicação expandida pela
jurisprudência e Doutrina[1], finalmente consagrada na Lei 10.406/2002, Código Civil,
nos artigos 113, 187 e 422[2].
Sem receber da norma
conceituação exata, passou a ser reconhecida como cláusula geral de observância
obrigatória[3]. Cáio Mário da Silva Pereira, ao analisar o instituto jurídico,
pondera e explicita seu caráter indeterminado, carente de concretização senão
da sua aplicabilidade ao caso concreto. A boa-fé consiste, segundo o autor, em
um padrão de conduta variável de acordo com as peculiaridades de cada relação
jurídica[4].
Embora jurídica, a boa-fé
objetiva aparenta transcender a própria lei[5], mencionada apenas como espécie
de medida de segurança comportamental que se modifica com o decorrer da própria
evolução social. Imperioso salientar que, nesta ótica, a boa-fé objetiva conduz
ao entendimento de que não deve prevalecer a linguagem, seja escrita ou oral,
sobre a intenção manifestada na declaração da vontade ou nas proposições nela
subentendidas decorrentes da natureza das obrigações contraídas ou impostas por
força dos usos interpretativos e da própria equidade[6].
O instituto da boa-fé objetiva
ergue-se, ainda, como tradução do interesse social na segurança das relações
jurídicas, exigindo das partes, reciprocamente, lealdade e confiança em todo
ciclo da vida dos pactos[7]. Entre credor e devedor, imprescindível mútuo apoio
na execução do contrato, subordinando-se regras que visem à colaboração de uma
parte com a outra. Faz-se um breve parêntese para elucidar a posição que vem
tomando a boa-fé em todo Direito Civil como fonte geradora da tutela da
confiança. Neste sentindo, discorre Anderson Schreiber[8]:
“[...] o reconhecimento da
necessidade de tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de
se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os
efeitos fáticos da sua adoção. Passa-se da obsessão pelo sujeito e pela sua
vontade individual, como fonte primordial das obrigações para uma visão que,
solidária, se faz atenta a repercussão externas dos atos individuais sobre os
diversos centros de interesse, atribuindo-lhes eficácia obrigacional
independente da vontade ou da intenção do sujeito que os praticou.”
Prosseguindo, outro aspecto a
ser considerado é o entendimento empreendido por Antônio Manuel da Rocha e
Menezes Cordeiro que entende a boa-fé objetiva como figura jurídica jurisprudencial,
estabelecida na dogmatização e padronização das decisões dos Magistrados[9]. A
investigação da boa-fé objetiva ocorre quase sempre em terreno de interesses
conflitantes, onde sua aplicação e extensão serão determinados pela jurisdição.
Cabe, nesse momento,
diferenciar a boa-fé “objetiva” da boa-fé “subjetiva”. A boa-fé subjetiva parte
de uma investigação quanto à inexistência da intenção capaz de macular, in
casu, o negócio jurídico. Trata-se de abordagem sobre questão psicológica do
agente, inquirindo sua intenção e seu conhecimento dos fatos. Já na boa-fé
objetiva, analisa-se o comportamento externo dos agentes, bem como suas
repercussões fáticas, extraindo-se daí um padrão comportamental de lealdade e
que explica Judith Martins-Costa[10]:
“‘A expressão ‘boa-fé
subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar
[ a parte] em conformidade ao direito [ sendo] aplicável, em regra ao campo dos
direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente
porque, para sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito
da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antiética à
boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de
lesar a outrem.’
‘Já por ‘boa-fé objetiva’ se
quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao
§ 242, do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros
ordenamentos e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law
– modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual
‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como
obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo
objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais
como status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação
mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo’”
Reiterando, diferentemente da
boa-fé subjetiva, que implica num estado de consciência do agente representado
pela inobservância ou ignorância quanto à mácula, a boa fé-objetiva, pela
própria previsão que recebe na norma, apresenta-se como standard, princípio
amplo, carente de concretização, singularmente aplicado ao caso concreto.
Tal construção remete a um
padrão de conduta comportamental, despertando dever positivo inerente à própria
essência dos negócios jurídicos, exigindo das partes cooperação para que o
contrato seja cumprido. Trata-se, portanto, de um instituto funcionalizado,
dever positivo, agir dos contratantes, nunca se confundindo com aquele dever
subjetivo negativo. Desta forma, a boa-fé objetiva não diz respeito ao estado
mental do agente, mas sim a um comportamento de cooperação necessário às
relações jurídicas.
Ainda quanto a diferenciações,
cabe a distinção entre o princípio da “obrigatoriedade” e a boa-fé objetiva. A
obrigatoriedade, traduzida nos dizeres latinos pacta sunt servanda, está
vinculada a necessária produção de efeitos acordados, para a manutenção da
segurança jurídica. Já a boa-fé objetiva faz referência ao comportamento das
partes contratantes, cujo resultado é substrato para o devido cumprimento
daquilo previamente acordado.
A boa-fé objetiva, segundo
Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin, inaugura uma
posição intermediária entre as tendências subjetiva e objetiva[11], submetendo
análise de conduta genérica dos contratantes, depois de já transcendida
verificação subjetiva da má-fé. Solidificou-se na jurisprudência e doutrina que
a boa-fé objetiva serve a três funções no direito contratual: a)
integrativa-interpretativa; b) criativa ou supletiva; c) corretiva ou
limitativa.
Quanto à função
integrativa-interpretativa, prescrita no art. 113 do código Civil[12], pode-se
afirmar que o instituto pressupõe que a extração do conteúdo volitivo em que se
eivam as prestações obrigacionais contratadas e os efeitos avençados, deve
sempre obediência a um pressuposto positivo determinado por padrão
comportamental seguro e satisfativo, inspirado na fidúcia, para as relações
contratuais.
Assim explica Judith
Martins-Costa[13]: “[...] atua aí a boa-fé [objetiva] como um kanon hábil ao
preenchimento de lacunas, uma vez que a relação contratual consta de eventos e
situações, fenomênicos e jurídicos, nem sempre previstos ou previsíveis pelos
contratantes.”
Nesta funcionalidade, sua
atuação se dá em dois momentos[14]. Inicialmente, na determinação da intenção
ou sentido comum atribuído à declaração contratual. Em consequência natural,
determinada a declaração contratual, surgem lacunas, ambiguidades e
obscuridades impassíveis de superação pela mera análise da intenção dos
contratantes. Eis que surge a segunda etapa da interpretação, na qual se
objetiva eliminar falhas inerentes à própria declaração negocial.
Interpretar conforme a boa-fé
objetiva é substituir o ponto de vista relevante, posicionando no contexto do
contrato um modelo de pessoa normal e razoável, a fim de averiguar o sentido
que se atribuiria à declaração negocial, caso houvesse percebido a deficiência
em sua formação[15].
A boa-fé objetiva, portanto,
desempenhando esta função, supre a necessidade da modificação do contrato ao
limite das causas que ensejariam sua rescisão ou resolução, para dizer o que
fariam as partes em vista de deficiência, baseada na vontade que originalmente
formou a avença e não no conflito entre os contratantes.
Acresça-se a isso o comentário
tecido por Judith Martins-Costa[16] que reconhece a função flexibilizadora e
integradora da boa-fé, a qual se desdobra, também, por exemplo, no controle das
cláusulas contratuais abusivas, em casos de exceção de inadimplemento ou na
interpretação da regra resolutiva. Neste campo, a boa-fé, desempenha
exponencial papel metodológico, visto que se se aplica diretamente na
sistematização das decisões judiciais.
Quanto à função criativa ou
supletiva, a boa-fé objetiva tem o condão de criar deveres jurídicos. Note-se
que não emergirão vantagens que poderiam ser juridicamente contratadas em
benefício unilateral de uma das partes. Os deveres jurídicos criados são
acessórios ao negócio, dizendo respeito a condutas necessariamente recíprocas
de cuidado, segurança, informação, cooperação, sigilo, prestação de contas,
dentre outros ao sabor de cada relação jurídica. Em sua obra, descreve Judith
Martins-Costa alguns exemplos de deveres advindos da função criativa da boa-fé
objetiva[17]:
“[...] a) os deveres de
cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas
guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito;
b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o
seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de
escolha para a satisfação do seu desideratum, o do consultor financeiro, de
avisar a outra parte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer
ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamentoescolhido, ou dos
efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o
do sujeito que entra em negociação, de avisar o futuro contratante sobre os
fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; se os deveres de
informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de
consumo, seja por expressa disposição legal (CDC [Código de Defesa do
Consumidor], artigos 12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em
atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que
incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de
colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da
prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o
pagamento, por parte do devedor; f) os deveres de proteção e cuidado com a
pessoa e o patrimônio da contraparte, como, v. G., o dever do proprietário de
uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar
arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os
deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou
fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações
preliminares, pagamento, por parte do devedor etc.”
Dessa maneira, a boa-fé
objetiva atua estabelecendo deveres anexos, voltados à mútua colaboração e à cooperação.
Diferem-se das obrigações principais avençadas, no que tange a sua finalidade.
Estas objetivam os efeitos e os resultados contratados, enquanto que os deveres
acessórios, decorrentes da boa-fé objetiva, buscam assegurar o cumprimento das
obrigações principais, metamorfoseando-se em deveres comportamentais[18].
Nesse sentido, explica Judith
Martins-Costa[19]: “[...] para que possa ocorrer uma coerente produção dos
efeitos do contrato, tornam-se exigíveis às partes, em certas ocasiões,
comportamentos que não resultam nem de expressa e cogente disposição legal nem
das cláusulas pactuadas.” Esta funcionalidade encontra-se prevista no Art. 422
do Código Civil[20] que, embora apenas defina os momentos de aplicação como os
da conclusão e execução dos contratos, não limita sua aplicação aos demais
momentos contratuais. Tal funcionalidade encontra embasamento na
jurisprudência:
“Imóvel. Permuta, com torna em
dinheiro. Bens adquiridos para incorporação. Irregularidade, porém, da
aquisição da permutante, por conta de débito previdenciário de quem lhe
transmitira os bens. Artigo 48 da Lei 8.212/91. Contaminação dos atos
subseqüentes. Falta, ademais, de cumprimento do dever de informação, corolário
da boa-fé objetiva em sua função supletiva, levando à frustração do fim do
negócio. Teoria da pressuposição. Indenização arbitrada em função da privação
do uso dos imóveis permutados, entregues à ré. Sentença mantida. Recurso
desprovido.”[21]
Por fim, a boa-fé objetiva
desempenha função corretiva ou limitativa, de modo a limitar a ruptura[22], a
desobediência e o abuso do direito daquilo estabelecido nos contratos e seus
deveres acessórios.
Essa funcionalidade, a priori,
se expressa na aplicação de institutos jurídicos protetores do equilíbrio
contratual, destacando-se, dentre estes: a) proibição ao comportamento
contraditório, expresso nos dizeres latinos nec potest venire contra factum proprium,
que veda a contradição ou oposição de conduta atual da parte quando já
praticada conduta anterior antagônica[23]; b) inciviliter agere que proíbe
condutas dentro, fora ou decorrentes das relações jurídicas que violem o
princípio da dignidade da pessoa humana, em suas muitas conceituações e
dimensões; c) tu quoque se que expressa pela invocação inesperada de regra que
a própria parte invocadora já tenha violado.
Esta terceira funcionalidade
visa, conclusivamente, conter a abusividade contratual e estabelecer parâmetros
comportamentais saudáveis e necessários ao desenvolvimento, cumprimento e
execução dos pactos jurídicos. E complementa Judith Martins-Costa[24]:
“Apresenta-se a boa-fé como norma que não admite condutas que contrariem o
mandamento de agir com lealdade e correção, pois só assim se estará a atingir a
função social que lhe é cometida.”.
O Código Civil de 2002 traz a
função corretiva da boa-fé objetiva em seu art. 187[25], ao erigi-la como
critério de determinação ao abuso de direito. Nessa tríplice funcionalidade,
está a importância do instituto da boa fé objetiva na qualidade de norteador
maior da vivência, eficiência e lealdade contratual, considerando-se e
subordinando-se sempre as disposições legais e os nuances avençados. Neste
diapasão, Gustavo Tepedindo, Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin, em
seus comentários ao Código Civil, concluem[26], que a boa-fé objetiva, de fato,
se adstringe aos fins objetivamente perseguidos com o contrato, em qualquer
função que seja: interpretativa, na criação de deveres anexos, ou na restrição
de condutas abusiva.
Ante todo o exposto, servirá a
boa-fé objetiva à função genérica de consolidar dogmática jurídica voltada ao
equilíbrio, eivada na convicção jurídica jurisprudencial inspirada na cultura
social de seu tempo e resistente às imperfeições humanas e ao próprio
ordenamento jurídico.
Nesse sentido conclui a
doutrina de Menezes Cordeiro[27]:
“[...] Uma dogmática jurídica,
radicada a cultura que a suporte e na segurança das convicções científicas dos
juristas que a sirvam, coloca, entre a fonte e solução do caso concreto, um
percurso que nenhuma lei pode dispensar e que o legislador não pode
corromper[...]”.
Veja mais;
.