Homicídios: mundo
reduz 16%; Brasil sobe 8,6%. Onde estamos errando?
De acordo com o
Relatório Global de Status da Prevenção da Violência 2014 (da Organização
Mundial da Saúde - ONU), no período de 2000 a 2012 a redução global dos
homicídios foi de 16%; no mesmo período, o Brasil teve crescimento de 8,6% na
taxa de assassinatos e de 24,1% nos números absolutos: em 2000 tivemos 45.360
mortes (26,7 para cada 100 mil pessoas); saltamos em 2012 para 56.337 óbitos,
com taxa de 29 para cada 100 mil. O relatório estima que em 2012 teriam
ocorrido 475 mil assassinatos no mundo todo (quase 12% deles no território
brasileiro); 60% das mortes são do sexo masculino, com idade entre 15 e 44
anos; os homicídios são a terceira causa de morte para homens nessa faixa
etária.
As Américas são a
região mais violenta do planeta: 28,5 homicídios para 100 mil habitantes; a
Região Africana vem em segundo lugar, com uma taxa de 10,9 homicídios por 100
mil habitantes. Ao longo do período de 2000 a 2012, as taxas de homicídio
tiveram uma queda de pouco mais de 16% globalmente (de 8,0 para 6,7 por 100 mil
habitantes); nos países de alta renda, a redução foi de 39% (6,2-3,8 por 100
mil habitantes). Nos países de renda média superior e inferior a queda foi de
13%; para os países de baixa renda a redução foi de 10%. Todas as regiões do
planeta estão reduzindo os assassinatos (o Brasil, no entanto, está na
contramão do mundo).
Onde estamos errando?
Desde logo, na
política criminal adotada, que tem cunho puramente reativo-populista, ou seja,
não temos no Brasil programas preventivos da violência e da criminalidade. De
outro lado, nossa reação funciona muito mal (porque aqui não existe a certeza
do castigo; poucos crimes são efetivamente punidos; o problema não é a
inexistência de lei, sim, de certeza do castigo). Editamos muitas leis penais
severas (“política da mão dura”), mas não temos estruturas para aplicá-las;
ademais, prendemos muita gente que não cometeu violência (51% do sistema
prisional). Para se ter uma ideia dos desacertos brasileiros, vejamos os
programas mais bem sucedidos no planeta (dentre outros):
(1) o de prevenção
primária (raízes do crime) nos países escandinavos (países altamente
civilizados de capitalismo distributivo: excelente escolaridade, alta renda per
capita e baixa desigualdade, com forte índice de certeza do castigo); (2) o de
prevenção secundária nos EUA (obstáculos ao crime: mais policiais, saneamento
das polícias - exclusão dos corruptos, bons salários e boas condições para se
trabalhar -, policiamento massivo nas “nas zonas quentes”, blitz generalizada e
contínua, alto índice de certeza do castigo etc.); (3) o de prevenção via
escolarização massiva de período integral + alto índice de certeza do castigo
(Coreia do Sul, Cingapura, Japão, Canadá, Alemanha etc.) e (4) o de prevenção
moral e ética (ética que ensina o respeito ao outro ser humano – é o caso dos
países que seguem doutrinas filosóficas, como a de Confúcio, no Oriente; eles
seguem o princípio ético da ahimsa, que significa não ferir, não maltratar, não
ofender, não matar (salvo em situações de extrema necessidade).
Por que somos
violentos?
São incontáveis os
fatores externos (externos ao humano) que facilitam o desencadeamento da
violência no Brasil: extrema desigualdade social, baixa escolarização (7,2
anos, em média; igual a Zimbábue), ausência do império da lei (a Justiça
funciona mal), forte relação de domínio, machismo, hierarquização social aguda,
apartheid, herança escravagista exterminatória, impunidade generalizada,
polícia não saneada, condições precárias de trabalho dos policiais, baixos
salários, sucateamento da polícia científica, enfraquecimento da polícia
investigativa (somente de 5% a 10% dos homicídios são apurados), guerra de
gangues, guerra com o narcotráfico ou entre narcotraficantes, ausência de dados
seguros sobre a violência, ausência de programa de vitimização, ausência de
programas de ação a partir dos dados seguros etc.
Tribalismo. Do ponto
de vista interno (biológico, psicopatológico e neurológico) a violência inata
aos humanos começa com o seguinte (veja Somos una espécie violenta?, coordenado
por David Bueno: 133 e ss.): nós, Homo sapiens, somos tribalistas: nos
identificamos com as pessoas do nosso grupo e não nutrimos simpatia nem empatia
com os demais, com “os outros”; toda tribo se considera diferente das outras e
deseja ser percebida dessa maneira, ou seja, como distinta (Garrett Hardin).
São membros da mesma tribo os que compartilham a mesma língua, os antepassados
comuns, o mesmo território ou ideologia, a mesma religião ou etnia, o mesmo
time de futebol ou partido político e, particularmente nos países com longa
tradição escravagista, a mesma classe social. A razão central de nos reunirmos
em tribos reside em algo obvio: viver em grupo é mais favorável para o êxito da
sobrevivência (p. 216). Quem vive isoladamente se torna mais frágil, mais
exposto, mais vulnerável.
Nossa preparação
neurobiológica para a violência: a grande maioria das tribos divide o mundo
entre os que pertencem ao seu grupo (relação de pertencimento) e os que
integram os “outros”. Desde crianças já manifestamos preferência pelo nosso
grupo e desconfiança, preconceito, medo e hostilidade frente aos demais. O
cérebro humano, ao longo da evolução, foi selecionando os requisitos
necessários para se viver junto com outras pessoas. Nosso cérebro tem
capacidade inata para detectar e processar os indicadores de similitude e
dissimilitude. Praticamente desde o nascimento já sabemos distinguir “quem é do
nosso grupo” e “quem é do outro grupo”. A cooperação (solidariedade,
cordialidade, lealdade) é mais frequente entre pessoas do mesmo grupo (da mesma
tribo). Frente aos outros, o normal é o distanciamento (perceptivo e afetivo),
quando não a agressividade ou até mesmo a violência. Por quê?
Tudo se processa nas
nossas redes neuronais (Somos una espécie violenta?: 217 e ss.), que são o
suporte das nossas emoções; à amigdala (ou amídala) corresponde a função básica
de detectar as ameaças ambientais (ela desencadeia nosso rechaço ou asco frente
a alguns alimentos ou substâncias prejudiciais). Dela emanam os sinais de
perigo (isso ocorre, por exemplo, com muitas pessoas quando veem gente de etnia
distinta ou estranhos ou diferentes) assim como o sentimento de indignação (em
razão de uma injustiça, por exemplo). As redes neuronais (amídalas + córtex)
são a base do ódio, da xenofobia, dos preconceitos e da desumanização de
algumas pessoas.
As doutrinas e os
discursos fanáticos, identitários, totalitários, ditatoriais, particularmente
se pregam o pensamento único, ampliam as distâncias entre os grupos (da
distância vem a indiferença, da indiferença despontam as diferenças e os
preconceitos, destes nascem os estranhos, dos estranhos brotam os indesejáveis,
dos indesejáveis surgem os inimigos e dos inimigos dimanam os não humanos, ou
seja, as não pessoas, que podem ser exterminadas ou torturadas impunemente –
Homo sacer).
Se os discursos
inflamados e fanáticos são acompanhados da exaltação do uso da violência,
rapidamente eclode a agressividade contra os desumanizados. Quem assim se
comporta não manifesta qualquer tipo de compaixão ou arrependimento pela dor e
sofrimento infligidos contra o estranho, o inimigo, o indesejável, o diferente.
O mal se banaliza (Arendt). Os nazistas, os terroristas, os fanáticos, os
religiosos radicais e os homofóbicos nem sequer percebem a dor alheia: “as
áreas do cérebro que se ativam quando vemos alguém do nosso grupo sofrer se
desativam diante de quem não é do nosso grupo, ou seja, diante dos
desumanizados” (p. 218). Muito provavelmente é isso o que sentem (ou não
sentem) os policiais que matam os marginalizados ou quando um marginalizado
mata um policial: a vítima não é vista como um humano; se ela não é vista, não
sofre. O mesmo mecanismo que permite identificar-se com o próprio grupo e
favorecer a necessária cooperação e o altruísmo também cria barreiras impermeáveis
como o sectarismo, o tribalismo, a desumanização e estereótipos e preconceitos
contra os outros grupos (p. 219).
Desumanização. A
tribalização se transforma em potente ferramenta para a prática de violências
contra “os outros”, sobretudo quando presente o mais macabro aspecto do
tribalismo que reside na desumanização desses “outros”. A desumanização é um
processo que acontece por etapas: primeiro o distanciamento, a indiferença;
depois despontam as diferenças, que os caracteriza como estranhos; em seguida
são percebidos como indesejáveis, inimigos e, por fim, como não humanos (como
não pessoas). Nisso se estrutura o chamado direito penal do inimigo
(descortinado por G. Jakobs). Chegados a esse ponto, os “outros” não mais são
considerados humanos dotados de direitos (daí a mutilação, a tortura ou mesmo o
extermínio, sem nenhum sentimento de culpa). Algumas pessoas, diante da
desumanização do “outro”, não tem qualquer tipo de escrúpulo ou experimenta
qualquer contradição diante da morte deste “outro”. Pior: a destruição do
“inimigo” (do outro), já desumanizado, passa a ser um prazer, um desfrute (como
no tempo do Homo caçador-coletor). Não podemos esquecer que durante 95% da
existência do Homo sapiens ele foi caçador-coletor (p. 135).
Saiba mais - Nossa
herança animal
Mesmo tendo havido
mudanças genéticas desde a descoberta da agricultura (10 mil anos atrás),
nossas pulsões, propensões e necessidades, ou seja, nossa constituição
biológica intrínseca segue sendo basicamente a de um primata caçador-coletor.
Até à revolução neolítica (que ocorreu com o desenvolvimento da agricultura –
há 10 mil anos atrás), os grupos humanos viviam como nômades, isto é, se
deslocavam de um lugar ao outro, procurando alimentos necessários para a
sobrevivência. No período Paleolítico (dos humanos caçadores-coletores), o Homo
sapiens dependia da caça de animais e da coleta de frutos e vegetais para sua
existência. Essas atividades herdadas do mundo animal, dos primatas, antecedem
a pecuária e a agricultura. Há 20 mil anos todas as tribos humanas eram
caçadoras-coletoras.
O tribalismo quando
se soma à ativação do sistema cerebral de recompensa (de prazer, de
satisfação), para além de produzir a conduta depredadora, pode explicar a
crueldade humana contra os que não pertencem ao mesmo grupo (incluindo-se nessa
atividade prazerosa a pena de morte, a tortura, o tratamento desumano).
Nas torcidas
organizadas ou ainda na política ou nos blocos de carnaval: “os membros de
todos os grupos tendem a qualificar seus companheiros de grupo como mais
cordiais, honestos, confiáveis e inteligentes, enquanto que os membros dos
demais grupos lhes parecem mal-intencionados, ineptos, estranhos, desonestos,
inimigos” (p. 217). Com essa “preparação neurobiológica” estamos sempre na iminência
de uma agressão ou violência. Ela é responsável por muitas das nossas condutas
e atitudes.
As classes sociais
também se comportam como tribos: especialmente em países gritantemente marcados
pelo apartheid de origem escravagista, elas se apresentam como tribos
inconfundíveis (e, em alguns casos, até “inimigas”, sobretudo quando se
acredita numa concorrência para a sobrevivência, como é o caso da xenofobia).
Aliás, quanto mais distanciamento entre elas, mas tribalistas elas são. Quando
o tribalismo (particularmente o fundado na hierarquização social de viés
escravagista ou na divisão de gangues, por exemplo) interage com os sistemas
cerebrais de dominação e depredação, a agressividade e a violência explodem com
muita frequência (e até mesmo com facilidade). Quem ocupa status mais baixo e
acredita que tem o direito de também integrar o mais alto, tem intenso
ressentimento e vê seus membros como “inimigos”, porque acabam sendo
considerados culpados pelo seu baixo status social. Este ressentimento leva à
violência (ou mesmo a guerras entre países ou até a extermínios coletivos). E o
inverso também ocorre: quem tem (ou quem se julga ter) alto status pode atuar
com agressividade e violência contra os “outros”, para reforçar seu hipotético
domínio.
Ideologia e
tribalismo. O cérebro humano (dizem os autores do livro Somos una espécie
violenta?: 215 e ss.) acredita facilmente em qualquer ideologia que lhe permita
acentuar as diferenças do grupo a que pertence em relação aos “outros”; existe
uma “preparação neurobiológica” pronta para aceitar qualquer tipo de reforço
das diferenças; qualquer doutrina ou religião ou ideologia “fanática”, que
explore essa “preparação neurobiológica” tende a prosperar; essa tendência
agressiva se agrava se as diferenças são vistas ou interpretadas como o motivo
fundamental de sua aparente infelicidade ou falta de progresso (na xenofobia
isso resulta muito evidente); essa diferenciação pode acabar justificando até
mesmo o aberrante assassinato de uma ou várias pessoas (veja o caso Charlie) ou
até a aniquilação de um grupo (como ocorreu no nazismo). A mesma coisa se passa
nos ataques homofóbicos.
Mesmo em multidão, as
tribos não perdem seus laços de empatia com os membros do seu grupo e de
antipatia com “os outros”. Isso explica em grande medida a presença de tanta
violência no carnaval ou nos estádios, por exemplo: a tribo da “camarotização”
tem ojeriza das outras; a tribo da “cordanização” (os que ficam dentro das
cordas) não tem empatia com “os outros” (sobretudo com a chamada “ralé da
pipocação”). O conflito se estabelece com frequência nos locais que se
transformam em palcos de multidões. As tribos, ademais, possuem uma dupla
moral: julga os comportamentos dentro do seu grupo de uma maneira (mais
compreensiva, mais humana) e se valem de outras réguas (outros padrões) para
julgar os “demais”; o grupo é complacente com os “de dentro” e (muito) rigoroso
“com os de fora”; o assédio sexual de um membro da tribo A é valorado de forma
bem diferente frente a outro da tribo B.
O tribalismo (como
pontificam os autores do livro citado: Somos una espécie violenta?) não explica
todo tipo de violência, mas constitui um fator importante nas condutas humanas
agressivas (p. 135). Outro fator relevante é o territorialismo (demarcação de
território), que também se faz presente no carnaval, cujos espaços físicos são
totalmente demarcados (o pessoal camarotizado não se mescla com os demais e os
cordanizados não aceitam a invasão da patuleia). Cabe advertir, entretanto, que
nem todas as pessoas se comportam consoante as características comuns ao
tribalismo. Em muitos não há a agressividade típica da dominação social. Eles
são humanistas, pacifistas e respeitadores dos direitos humanos universais.
Antídoto
O antídoto para essa
tendência natural à agressividade e à violência reside na educação de qualidade
(esmerada). Não se trata de uma garantia absoluta, mas a boa educação tem força
para conter grande parcela dos nossos impulsos violentos. “Salvo que uma
educação esmerada tenha contido os impulsos naturais, o humano desfruta do ato
de caçar bem como do ato de matar” (S. Washburn). A caça gera prazer (tanto
quanto o castigo do outro). O espetáculo público da tortura e da morte acontece
para que todos possam desfrutar disso (para o prazer coletivo). O caçador tem
prazer de caçar e de matar os integrantes dos outros grupos (diz J. Goodall).
Uma prova de que a
educação esmerada tem muito a ver com a violência reside no ranking mundial dos
países levando em conta a escolaridade, a renda per capita e a expectativa de
vida. Estamos falando do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). O ranking de
2013 nos revela que os países educacionalmente mais desenvolvidos praticam
menos violência. Se a escolaridade se combina com a baixa desigualdade, menos
violência ainda acontece. Vejamos: ( tabela com levantamento do iaB )
Como evidenciado pelo
levantamento do Instituto Avante Brasil, quando comparados os grupos do IDH com
o valor do Gini destes grupos e a taxa de homicídios, percebe-se que quanto
maior a desigualdade social (evidenciada pelo Gini) e menor a escolaridade,
maior é a taxa de homicídios.
Veja mais;
http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/168592883/homicidios-mundo-reduz-16-brasil-sobe-8-6-onde-estamos-errando?utm_campaign=newsletter-daily_20150223_762&utm_medium=email&utm_source=newsletter
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