Rejeitada denúncia de tentativa de furto de um pedaço de
carne avaliado em R$22,30, em Blumenau
O Juiz de Direito Juliano Rafael Bogo, da comarca de
Blumenau, Santa Catarina, rejeitou a denúncia ofertada pelo Ministério Público
de Santa Catarina que buscava responsabilizar criminalmente o sujeito que
tentou furtar um pedaço de carne, tipo alcatra, avaliado em R$ 22,30. O
magistrado reconheceu a irrelevância penal da imputação, sublinhando os custos
da persecução de fatos insignificantes do ponto de vista penal. O Empório do
Direito recomenda a leitura da decisão, transcrita abaixo.
Autos nº 0020617-31.2011.8.24.0008
Ação: Ação Penal – Procedimento Ordinário/PROC
Autor: Ministério Público do Estado de Santa Catarina
Acusado: M. De A.
Vistos etc.
I – Relatório:
Ministério Público do Estado de Santa Catarina denunciou M.
De A., acusando-o de ter praticado o crime previsto no art. 155, § 2º, c/c art.
14, inciso II, do CP, por ter subtraído para si, no dia 25 de agosto de 2011,
uma peça de carne tipo alcatra, avaliada em R$22,30 (vinte e dois reais e
trinta centavos), do Supermercado Bistek, não conseguindo consumar a infração
por circunstâncias alheias a sua vontade, conforme fatos e circunstâncias
narrados na denúncia de fl. II.
Inicialmente, o réu aceitou a suspensão condicional do
processo.
Após, a benesse foi revogada, retomando-se o andamento da
ação penal.
Citado, o réu apresentou resposta escrita, postergando
pronunciamento sobre o mérito após a devida instrução do feito.
Em audiência foram produzidas as provas, após o que as
partes apresentaram suas alegações finais. O Ministério Público requereu a
condenação do réu, nos termos da denúncia. A defesa, por sua vez, sustentou que
deve ser aplicado ao caso o princípio da insignificância; que não há provas
suficientes para condenação e, subsidiariamente, no caso de condenação, seja
reconhecida a atenuante de confissão espontânea.
II – Fundamentação:
Aqui se verifica que o Estado, por meio das agências
encarregadas da persecução penal, busca apurar os fatos e obter a condenação de
uma pessoa por ter tentado subtrair um pedaço de carne (alcatra) de um grande
supermercado. O sujeito foi flagrado pelos seguranças do estabelecimento. O
produto foi apreendido e, de plano, restituído ao supermercado. Depois, coube
ao Estado a tarefa de, sob a justificativa de que o patrimônio é um bem
jurídico a ser protegido, por meio do direito penal, instaurar um inquérito e
um processo judicial contra o acusado, ainda que se soubesse, de antemão, que o
custo de tudo isso seria infinitamente superior ao prejuízo que a vítima possa
ter sofrido (se é que prejuízo houve).
Lamentavelmente, muitos operadores jurídicos vivem na
ilusão de que o Poder Judiciário possui capacidade de absorver e dar uma
resposta a todo e qualquer conflito surgido na sociedade.
Isto é, numa atividade nitidamente mecânica, sem a
necessária visão crítica, esquece-se que enquanto o Poder Judiciário é chamado
a tratar de pequenos delitos, que nenhuma relevância possuem, como um furto de
uma porção de alcatra, outras inúmeras ações penais versando sobre crimes de
média e alta gravidade ficam para trás, sem a resposta penal tempestiva e
adequada, ou são levadas ao insucesso pela superveniência da prescrição.
Alexandre Morais da Rosa abordou o tema em artigo publicado
no Conjur (aqui):
“A Tragédia dos Comuns é um tipo de armadilha social de
fundo econômico que envolve o paradoxo entre os interesses individuais
ilimitados e o uso de recursos finitos. Por ela, se declara que o livre acesso
e a demanda irrestrita de um recurso finito (Jurisdição) terminam por condenar
estruturalmente o recurso por conta de sua superexploração. Em face dos
limitados recursos do Poder Judiciário e de sua capacidade de assimilação, a
propositura de ações abusivas, frívolas ou de cunho meramente patrimonial (bagatela,
insignificantes), sem custo, pode gerar o excesso de litigância (abusivo ou
frívolo). O custo de um processo é assimilado pela coletividade e pelos demais
usuários na forma de uma externalidade negativa, ou seja, os processos que
deveriam ser julgados não podem, pela acumulação de ações inautênticas[3]. Por
isso, Júlio Marcellino Jr[4] aponta:
“O modelo tradicional de acesso à Justiça, seja em sua
versão clássica ainda defendida por muitos, seja em sua versão atual baseada no
modelo gerencial e de eficiência, ainda se mostra precária e insuficiente para
dar conta de toda a demanda de ações judiciais. Em outras palavras, entende-se
que tal modelo ainda não alcançou, apesar dos significativos avanços,
efetividade em nível razoável. Isto porque há uma evidente saturação da
capacidade de resposta do Judiciário. Há uma parcela da demanda judicial, e que
representa muito em termos de volume, de ações propostas em caso de litigância
frívola, ações repetitivas, e litigantes habituais. Entende-se, e defende-se
como questão central a partir deste estudo, que nesses casos, de baixa
probabilidade de êxito em demandas ou na hipótese de demandas repetitivas, há
um flagrante abuso de direito de ação.”
É claro que os viciados em punição e que apostam suas
fichas no Direito Penal, num país com a terceira posição no ranking mundial de
segregados, pensam que se prende pouco. Esses deveriam entender que o Direito
Penal não pode dar mais do que se pede a ele, ou seja, o Direito Penal sempre
chega atrasado e não possui os efeitos que promete.“
Adotando-se uma visão minimalista do direito penal
(necessária num Estado Democrático de Direito), e considerando a incapacidade
do Poder Judiciário de dar resposta a todo e qualquer conflito surgido no meio
social, é inarredável que se faça uma filtragem nas ações penais, para que
questões singelas e sem importância não obstem o trato de casos efetivamente
relevantes.
Ou seja, não se pode admitir a instauração de um processo
penal para tratar de fato irrelevante para a sociedade, em comparação com
inúmeros crimes de média e alta gravidade pendentes de apuração e julgamento,
sob pena de restar inviabilizada a resposta estatal para esses delitos que
efetivamente afligem o meio social.
Por outro lado, não se pode perder de vista que a criminalização
primária (legislador) e secundária (instâncias encarregadas da persecução
penal) está sujeita a limites estabelecidos pelos princípios da intervenção
mínima e da lesividade, bem como pelos direitos fundamentais reconhecidos pela
Constituição.
Não se pode criminalizar toda e qualquer conduta reprovável
do ponto de vista moral, sem que haja relevante ofensa a um bem jurídico.
Igualmente, não se pode impor uma sanção penal sem que a conduta do réu tenha
causado significativa lesão a um bem jurídico protegido. Ou seja, o Direito
Penal opera de forma fragmentária, tendo sempre como referência o princípio da
lesividade (cf. LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 9. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 380).
Juarez Cirino dos Santos ensina:
“O princípio da lesividade proíbe a cominação, a aplicação
e a execução de penas e de medidas de segurança em casos de lesões irrelevantes
contra bens jurídicos protegidos na lei penal, porque considera o bem jurídico
do ponto de vista qualitativa (natureza do bem jurídico) e do ponto de vista
quantitativo (extensão da lesão do bem jurídico). 1. Do ponto de vista
qualitativo (natureza do bem jurídico), o princípio da lesividade impede a
criminalização primária e secundária excludente ou redutora das liberdades constitucionais
de pensamento, de consciência e de crença, de convicções filosóficas e
políticas ou de expressão da atividade intelectual, artística, científica ou de
comunicação, garantidas pela Constituição acima de qualquer restrição da
legislação penal. 2. Do ponto de vista quantitativo (extensão da lesão do bem
jurídico), o princípio da lesividade exclui a criminalização primária ou
secundária de lesões irrelevantes a bens jurídicos. Nessa medida, o princípio
da lesividade é a dimensão positiva do princípio da insignificância em Direito
Penal: lesões insignificantes de bens jurídicos protegidos, como a integridade
ou saúde corporal, a honra, a liberdade, a propriedade, a sexualidade etc, não
constituem crime” (SANTOS, Juarez Cirino dos. Manual de direito penal. 2 ed.
Florianópolis: Conceito, 2012. P. 14-15).
Sobre a tipicidade, leciona Rogério Greco:
[…] tipicidade significa “a subsunção perfeita da conduta
praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um
tipo penal incriminador […]. A adequação da conduta do agente ao modelo
abstrato previsto na lei penal (tipo) faz surgir a tipicidade formal ou legal.
Essa adequação deve ser perfeita, pois, caso contrário, o fato será considerado
formalmente atípico. […] Entretanto, esse conceito de simples acomodação do
comportamento do agente ao tipo não é suficiente para que possamos concluir
pela tipicidade penal, uma vez que esta é formada pela conjugação da tipicidade
formal (ou legal) com a tipicidade conglobante. […] A tipicidade conglobante
surge quando comprovado, no caso concreto, que a conduta praticada pelo agente
é considerada antinormativa, isto é, contrária à norma penal, e não imposta ou
fomentada por esta, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal
(tipicidade material). […] Sabemos que a finalidade do Direito Penal é a
proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade. O princípio da
intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolha dos bens a
serem protegidos pelo Direito Penal, assevera que nem todo e qualquer bem é
passível de ser por ele protegido, mas somente aqueles que gozem de certa
importância. Nessa seleção de bens, o legislador abrigou, a fim de serem
tutelados pelo Direito Penal, a vida, a integridade física, o patrimônio, a honra,
a liberdade sexual etc. Embora tenha feito a seleção dos bens que, por meio de
um critério político, reputou como os de maior importância, não podia o
legislador, quando da elaboração dos tipos penais incriminadores, descer a
detalhes, cabendo ao intérprete delimitar o âmbito de sua abrangência. […]
Assim, pelo critério da tipicidade material é que se afere a improtância so bem
no caso concreto, a fim de que possamos concluir se aquele bem específico
merece ou não ser protegido pelo Direito Penal” (Curso de Direito penal: parte
geral. 16. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. P. 164-168).
Na espécie, trata-se de uma tentativa de furto de um pedaço
de carne, do tipo alcatra, avaliado em R$ 22,30, o que representa menos de 30%
de um salário mínimo, valor tido por irrisório (toma-se por referência decisão
do STJ noAgRg no REsp 1376290/RJ, Rel. Ministra Regina Helena Costa, 5ª Turma,
julgado em 10/06/2014, DJe 18/06/2014). Ademais, o bem foi imediatamente
recuperado pela vítima, a qual, portanto, não sofreu prejuízo financeiro.
Destarte, mostra-se claramente irrelevante a lesão ao bem jurídico tutelado,
inexistindo tipicidade material. Portanto, não há crime.
III – Dispositivo:
Ante o exposto, julga-se improcedente a denúncia, para
absolver M. De A., nos termos do art. 386, III, do CPP.
Sem custas.
P. R. I.
Após o trânsito em julgado, arquive-se o processo.
Blumenau (SC), 13 de maio de 2015.
Juliano Rafael Bogo
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