quarta-feira, 27 de maio de 2015

Os retratos falados e o problema das Falsas Memórias



Os retratos falados e o problema das Falsas Memórias




Aqui em Salvador, na Bahia, um fato muito triste aconteceu: uma médica foi estuprada ao sair do seu trabalho.

De todos os crimes eu acho o estupro um dos mais bizarros, violentos, inaceitáveis. No entanto não quero falar do estupro, mas de algo (também!) trágico que aconteceu com toda esta história - que eu espero que tenha um final de feliz: a prisão do verdadeiro culpado.

É que, por meio de um retrato falado, divulgado na mídia, um rapaz veio a público dizer que fora confundido e que, por isto, vem sofrendo. As notícias por aqui na Bahia circulam assim: Homem apontado como autor de estupro a médica presta queixa por difamação.

Segundo ele,

As pessoas me apontam na rua, tenho três dias sem dormir direito, tomando remédio, sem comer, minha vida virou de cabeça pra baixo. Pela Justiça eu estou livre, mas estou sendo acusado pelas pessoas. Minha esposa está me apoiando, estão me expondo e quase não tenho saído de casa.

A Polícia Civil informou que desconhece a origem da foto divulgada nas redes sociais e que não reconhece o homem como suspeito do crime. Ainda de acordo com a Polícia Civil, o delegado responsável pelo caso, Drº William Achan, classificou o acontecimento de "brincadeira de má-fé" e afirmou ainda que o rapaz da foto vai processar os responsáveis pela divulgação da imagem e das informações atribuídas a ele.

De fato, vivemos numa era de extrema violência. Uma era de vingança. Pessoas "de bem" estão cometendo injustiças e atrocidades sob a pretensão de salvar a sociedade do mal.

Qual o problema disso tudo? Os problemas, na verdade:

1- Retrato falado é uma coisa perigosa demais, ainda mais hoje quando estudos avançados de neurociência já falam dos perigos das "falsas memórias". A mulher foi estuprada e vai fazer um retrato falado. A primeira imagem que vem à cabeça, num momento de estresse como este, é a imagem que ela vai jogar pra ser desenhada. Pode ser a imagem de um sonho, uma foto que viu numa revista - e mesmo a imagem de alguém que viu estuprando em um filme.

A dra. Lilian Milnitsky Stein, no livro Falsas Memórias - Fundamentos Científicos e suas Aplicações Clínicas e Jurídicas, diz que

Quando a vítima faz o reconhecimento do suspeito, em vez de acessar a memória verdadeira – aquela primeira, do assalto – a vítima, sem se dar conta, acessa a memória errada. Isso não quer dizer que ela esteja mentindo, porque ela não percebe que esta memória se refere apenas à do retrato falado. Outra situação que pode confundir a vítima é colocar pessoas de biotipos diferentes na hora do reconhecimento.

É claro que não estamos dizendo que a vítima não sabe o que diz, que não devemos confiar. Nada disso! O que estamos querendo dizer é que é preciso tomar cuidado. Como diz Nietzsche: "Não existem fatos, apenas interpretações".

2 - A ajuda do povo nem sempre é bem vinda. Eu considero a Polícia Civil muito boa, capacitada e tal, mas... Divulgar retrato falado é uma prova de como a polícia ainda não tem lá todo este preparo. Cadê o serviço de inteligência para descobrir as coisas, por meio das investigações, sem precisar colocar a população, ávida por vingança, para "ajudar"? Um retrato falado é uma espécie de "é mais ou menos parecido com isto, minha gente", e não deve, nunca, ser considerado como "o real". Em épocas de Whatsapp e Facebook, onde boatos são as novas verdades, divulgar retrato falado e esperar boa coisa é muita ingenuidade.

3 - Não é raro encontrar pessoas parecidas com outras. Certamente alguém já lhe disse ou você já exclamou: “Você parece muito com uma pessoa que eu conheço!”. Um estudo realizado pela Universidade da Carolina do Norte apontou que os rostos das pessoas estão se tornando cada vez mais parecidos. Vejam este site interessantíssimo: Todo el mundo tiene un doble.

Un estudio de la Universidad de Carolina del Norte apunta que los rostros de las personas cada vez se parecen más. Se llegó a esta conclusión tras estudiar más de 200 cráneos españoles y portugueses de los últimos cuatro siglos.

Importantes conclusões:

Um retrato falado é útil, mas

Existe a possibilidade de ao narrar o retrato falado a pessoa estar acessando falsas memórias;
O retrato falado deve servir para a polícia investigar;
Redes Sociais estão se tornando o novo tribunal de Inquisição e onde injustiças, crimes e incentivos para crimes acontecem;
E por fim, mas não menos importante, é preciso tomar cuidado com as aparências, pois elas enganam e um dia você pode ser confundido com outro alguém e sofrer as dores de ter que provar que não fez o que dizem que você fez e, depois de provar inocência, viver com as duras marcas dos estragos feitos.
Sejamos mais responsáveis, porque digamos que alguém se pareça realmente com a pessoa de uma foto: parecer não é ser, sendo assim "in dubio pro reo".

Wagner Francesco
Wagner Francesco
teólogo e acadêmico de Direito.

Nascido no interior da Bahia, Conceição do Coité, formado em teologia e estudante de Direito. Pesquiso nas áreas do Direito Penal e Processo Penal. Página no Facebook: facebook.com/wagnerfrancesco.jus

Veja mais;

http://wagnerfrancesco.jusbrasil.com.br/artigos/190271676/os-retratos-falados-e-o-problema-das-falsas-memorias?utm_campaign=newsletter-daily_20150522_1209&utm_medium=email&utm_source=newsletter

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